O medo e a paixão constantes

O que seria então aquela sensação de força contida, pronta para rebentar em violência, aquela sede de empregá-la de olhos fechados, inteira, com a segurança irrefletida de uma fera? Não era no mal apenas que alguém podia respirar sem medo, aceitando o ar e os pulmões? Nem o prazer me daria tanto prazer quanto o mal, pensava ela surpreendida. Sentia dentro de si um animal perfeito, cheio de inconseqüências, de egoísmo e vitalidade. (Perto do Coração Selvagem; Clarice Lispector; p. 12)


Eu recitei o parágrafo que já me era decorado mais uma vez, deliciando-me com a melodia oscilante de minha voz firme, distorcendo-se de acordo com que a minha sensação de superioridade ia aumentando. Clarice Lispector deixava ecoar em minha mente e pulsar em minhas veias o escarlate que usou ao construir Joana, construí-me eu também com o mesmo veneno que escorria do livro sem a escritora saber. E lá estava eu, com um batom da tal cor e com os cabelos negros caídos sobre os ombros, próxima a Joana, talvez um pouco mais atraente e envolvente, ainda assim uma pérola negra. De meus lábios escapava um sorriso sarcástico e meu olhar era como de uma fera nunca domada. Selvagem.
O rapaz me encarava, um pouco sensato, digamos. Mais do que os outros pelo menos. Mal sabia o pobre coitado que o que o aguardava não eram os lábios doces de uma garota apenas sensual. Mal sabia que minha língua era ardente e cortante como um chicote. Mal sabia o quão persuasivos seriam os meus olhos ao dá-lo a facada final. Por que eu despedaçava corações de jovens rapazes? Pelo simples fato de poder sentí-los fraquejando, me odiando e me desejando. Ver seus corações se despedaçando ao chão. Qual como quando se joga um cristal ao chão com brutalidade, eu jogava o coração frágil de homens que me subestimavam.
– Tens ainda a astúcia de me encarar? Onde está sua honra agora? Mandei-o ir embora, pois vá. – disse com a delicadeza que me era propícia. Acrescente-se aqui que a delicadeza que me era propícia era ávida e majestosa, daquelas que intimidam e amaldiçoam.
– Não é qualquer senhorita que me diz o que fazer.
– Realmente não é qualquer senhorita. É uma dama, uma dama da qual deverias ter medo, diga-se de passagem.
– Medo de que? Tu não podes tirar nada mais de mim. Além das jóias caras que salpicou aqui e ali, também roubaste meu coração.
 – Pois que bom que já entendeste a essência de nosso romance: minha ganância, sua idiotice. Agora vá, infeliz!
E então ajoelhou-se aos meus pés, suplicando-me que não o deixasse, que o acolhesse se não em meu coração ainda em minha mente. Entre lágrimas covardes, beijava meus pés. Tinha medo. Não apenas medo de mim, mas medo de me perder. Pois é esse o veneno que cultivo nos homens e que eles mesmos regam com suas lágrimas salgadas: a dor eterna, e sensação de ter tudo e não ter nada, o medo e a paixão constantes.

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