As paredes
estavam todas manchadas, machadas de café, de tinta, de rabiscos de crianças,
machadas de bolor. Estavam manchadas de alguma coisa que as tornava diferentes
uma das outras e, de certa forma, especiais. Todas elas haviam sido brancas um
dia, mas seus donos resolveram dar-lhes nova cor, dar-lhes características próprias.
Na parede de Priscila,
dava pra ver a fumaça que saia de seus lábios após tragar o cigarro. Dava pra
ver as manchas de batom vermelho e as mechas de cabelo louro. Dava pra sentir o
cheiro de bebida, na parede de Priscila. A parede era cinza. Cinza porque sua
vida não tinha cor e, ao mesmo tempo, ela não queria continuar no branco. Uma
mudança radical para o preto? Não, melhor não arriscar tanto. Cinza. Cinza era
perfeito.
Cinza combinava
com as machas de batom. Ela decidiu-se: sua parede ia ser cinza.
Decorá-la com as
manchas de batom não foi difícil, já que estava sempre com os lábios
escarlates. A fumaça do cigarro como que foi se impregnando por conta própria
e, no fim das contas, apesar dos pesares, ela achou que combinou com o resto. Um
pouco de água oxigenada e, vòila, as mechas louras estavam por aí. A cerveja
ela derrubou quando estava bêbada, e aí não tinha mais jeito. Não ficou tão
mal, afinal.
Difícil mesmo foi
inserir aquele toque especial... Priscila queria, bem no meio da sua parede, um
coração bem gordo e cor-de-rosa. Não que gostasse de cor-de-rosa, mas queria um
amor dessa cor. Queria, por fim, um amor cheio de paz e ternura, um amor fresco
como a brisa da manhã, um amor com beijos doces. Gordo e cor-de-rosa, decidiu,
bem no meio da tal da parede.
Foi o que mais
demorou pra ser feito na decoração. Para começar, foram dias testando a mistura
perfeita entre o vermelho e o branco. Depois, foi fazer o esboço – e o rabisco
acabava sempre por ficar muito gordo ou muito magro, muito comprido ou muito
estreito. Começou a pintar e percebeu que era ainda mais complicado preencher
tudo aquilo. E olha que já tinha dado o maior trabalho concluir as duas
primeiras etapas.
Por fim, depois
de pronta a tinta, pronto o esboço, preenchido o coração... Lá estava o
desenho, bem no centro da parede. E ela percebeu que o cinza havia sido
substituído por um vermelho flamejante de vida, que a fumaça foi tornando-se
opaca e quase não se distinguia, que a tal cerveja que tinha derrubado fora
coberta – ainda bem, porque ela não gostava daquela coisa nojenta ali. As
manchas de batom e as madeixas ainda estavam lá e ela achou que acabou por
combinar com o coração mesmo.
Qual foi o papel
do coração na vida de Priscila? Alguns diriam que anulou todas as suas outras
escolhas e a sua antiga personalidade, mas a verdade é que o batom e a mecha
ainda estavam ali, como traços de quem ela realmente era, e que ela faria tudo
de novo: não tinha parado de beber nem de fumar, só não eram essas atitudes que
decoravam a sua vida agora. Alguns diriam que é mentira, que o amor não tem
esse poder de apagar o nosso passado e que isso não passa de criação lírica
para um texto babaca. Eu digo que existem várias priscilas por aí, aguardando
que um coração pinte sua parede de novas cores. Nada foi apagado e, se
descascarmos a nova camada de tinta, talvez vejamos a tal da bebida e a tal da
fumaça. Ainda estão lá, mas não têm mais nenhuma significância. O coração coloriu
sua vida novamente e o resto passou a ser apenas resto.
Vai deixar sua
parede embolorar ou vai passar uma nova camada de tinta na sua vida?
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