Clara
Nunes canta sobre um soluçar de dor que, segundo ela, ninguém ouviu. Eu não estava
lá, mas o ouço muito bem até hoje. Seus ecos arrepiam-me os pelos do braço e
insinuam lágrimas nos olhos. E tanto faz esse meu sentimento, não devo ser eu o
foco das minhas palavras. O foco é o soluçar.
Antes
fosse apenas soluçar, eu ouço mesmo é um grito. Um desespero, uma dor tamanha
que rasga a entranha daquele que sente.
Eu
ouço uma mãe a gritar pelo filho. E eu quase vejo o desespero de seus olhos
negros bem abertos. E eu quase sinto a mão que rasgou seu coração tentando
rasgar a minha alma. Mas, não, o foco não é o que eu sinto. O foco é o coração
dessa mãe – e o canto feroz da perda.
Feroz,
selvagem. Existe mesmo o conceito de selvageria quando se trata de amor, de
amar? Não seria todo amor meio selvagem e toda perda não despertaria essa
ferocidade, essa feracidade, esse grito desolado? Não, não. Os civilizados amam
com mais graça – e aceitam a perda com mais desdém. Quisera essa mulher que
fosse apenas perda: ela conhecia a morte e sabia que ela aconteceria.
Mas
ela não conhecia o homem branco. Ela não conhecia a arma de fogo. Ela não conhecia
isso de ser cruel só por ouro. Ela vivia em um sistema de vida tão mais brando,
e que tão melhor ao seu coração se adaptava... Esse sistema mudou. Foi
invadido. Mas como invadir o coração de uma mãe?
Eles
tentaram quebrar seus ídolos. Eles tentaram se fazer passar por deuses – deuses
que traziam a mensagem de um Deus estranho, que eles não entendiam muito bem. Eles
tentaram despedaçar sua própria psique e seu jeito de ver o mundo. Eles vinham
de outro mundo? Ou de outra terra? Outra terra? E por que é que eles
descobriram aquilo lá, se essa mãe já vivia lá há tanto tempo? Se seus bisavós
tinham bisavós que tinham bisavós que já sabiam que aquele chão existia?
Eles
quebraram seus ídolos.
Agora
tentavam quebrar seu coração.
Alienar
sua liberdade.
Essa
mãe não sabia o que era liberdade porque nunca teve oportunidade de conhecer
qualquer um de seus antônimos. A liberdade lhe era tão natural que sobre ela
não precisava falar, não precisava pensar, não precisava nem saber que ela existia.
Ela era livre, exatamente por não entender nada sobre tal conceito. (Nós que
somos cheios de amarras é que temos a necessidade de falar o tempo todo sobre essa
tal liberdade).
Quando
tentaram sujeita-la, ela soube o que era a liberdade, mesmo sem colocar isso em
palavras. Como todo o resto que fugia à sua psique, ela sabia que algo estava
errado, diferente. Ela sabia que tinha que batalhar por algo.
Ela
resistiu. Seus irmãos resistiram. Seus primos resistiram. Seus filhos
resistiram.
Por
que se submeteriam, afinal de contas? Isso não fazia parte de seu sistema de
crenças.
Embora
sua inteligência não conseguisse acompanhar tudo o que lhe acontecia, – afinal,
seu mundo era outro, era anterior à essa “descoberta” – pôde sentir, em seu
mais profundo, a crueldade. Eles queriam escraviza-la, prender sua alma em gaiolas,
como faziam aos pássaros. Ela não se rendeu. Eles lhe mataram os filhos.
Em
sua frente. Para que visse e se sujeitasse.
Mas
ela apenas gritou.
Você
pode ouvir seu grito?
Pode
imaginar sua dor?
Hoje,
um dia depois da comemoração hipócrita feita por brancos que ignoram o que ainda
sofrem os poucos que sobreviveram ao genocídio – ou tapam os olhos para tal
realidade, porque pensar na dor alheia continua não sendo muito lucrativo –, eu
ouço esse grito e tento imaginar sua dor. Apenas tento, porque não sou mãe e
nunca conseguiria entrar por definitivo na alma de um nativo e em sua mente,
que se projetava de forma tão diferente, por viver de modo tão diferente.
Tentando, percebo que o grito dessa mãe ecoa – e não apenas no que restou dessa
gente. Ecoa porque a ganância continua a matar crianças sem piedade. Ecoa
porque o mundo civilizado ainda não conseguiu abandonar a barbárie. Ecoa, ecoa.
Eu
venho, com essas palavras, pedir compaixão – não importa por quem.
Escrevendo,
venho fazer-lhes um apelo: que amem. E é agora um sublime sussurrar das
memórias dessa mãe que me diz isso: amem, amem, amem!
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